Reaproveitar e costurar: a técnica upcycling das marcas portuguesas Grita e Vortex

Neste artigo, explico o que é o upcycling, alguns desafios e vantagens, e o panorama da moda upcycled em Portugal, com destaque para o trabalho de duas marcas, a Grita e a Vortex – com uma entrevista às fundadoras das marcas, Cristina Garcia e Catarina Amaro, respetivamente.

É muito provável que já tenhas ouvido falar do conceito upcycling, aliás, na FashionHub já abordámos esta técnica em alguns conteúdos. No entanto, todos os dias o upcycling alcança relevância e populariza-se ainda mais, principalmente entre a Geração Z, ao mesmo tempo que esta técnica é cada vez mais importante para reduzir o impacto da Indústria da Moda no ambiente.

Desde o surgimento do upcycling, durante os anos 90, que o panorama em relação a esta técnica se alterou, mais do que proporcionar estilo e identidade às peças, a moda upcycled foi uma forte influência para redefinir o comportamento de consumo, com um objetivo principal: diminuir o desperdício têxtil. Mas, há outras vantagens associadas, que descrevo mais à frente.

Sob o lema “reduzir, reutilizar e reciclar, o upcycling é uma das formas mais comuns da Geração Z consumir moda. Esta geração, nascida entre 1997 e 2012, está atenta às necessidades climáticas, mas vê também fatores financeiros terem bastante influência no seu padrão de consumo: o trabalho (muitas vezes) precário; os salários que não chegam para suportar todas as necessidades; a inflação e a quebra do poder de compra. Todos estes parâmetros proporcionam ajustes no nível de vida e o dinheiro acaba por ser investido em bens de primeira necessidade, como a alimentação e a habitação. No entanto, não deixaram de investir em moda, simplesmente repensaram os seus hábitos de consumo e, nem tudo é mau nesse aspeto.

A moda assume a sua responsabilidade económica, social e ambiental e, neste artigo, explico o que é o upcycling, alguns desafios e vantagens, e o panorama da moda upcycled em Portugal, com destaque para o trabalho de duas marcas, a Grita e a Vortex – com uma entrevista às fundadoras das marcas, Cristina Garcia e Catarina Amaro, respetivamente.

Em que consiste o upcycling?

A técnica upcycling é um recurso da moda circular que agrega um novo valor e atributo às matérias-primas que se encontram em bom estado, mas que acabariam por ser descartadas. Antes, fazer uma nova peça de roupa a partir de uma já existente era visto como algo que apenas as pessoas mais criativas faziam. Atualmente, já se percebeu que é um ato praticado por pessoas com responsabilidade e capazes de produzir moda com baixo impacto para o meio ambiente.

Por exemplo, as calças de ganga que já não utilizas, mas o tecido ainda está em bom estado, podem ter uma nova utilidade ao serem transformadas em calções, ou na confeção de qualquer outra peça de roupa.

Mas há também outros conceitos ligados ao upcycling, como a técnica de patchwork, que trabalha com sobras e retalhos de diferentes tecidos, e o rework, que, como o próprio nome indica, é uma forma de “retrabalhar” uma determinada peça de roupa através da personalização. No “rework”, a peça é modificada para ter um novo design, com a aplicação de bordados, por exemplo.

Impacto e necessidade

A técnica upcycling surgiu como uma tendência em ebulição nos últimos anos, principalmente devido à preocupação dos consumidores com a sustentabilidade. Segundo alguns dados recentes, da Fundação Ellen MacArthur, 71% dos consumidores revelam interesse por negócios circulares, tais como serviços de arranjos e segunda mão.

O upcycling como tendência, adquire mais importância devido ao nível assustador de poluição da Indústria da Moda que, segundo outro estudo da mesma Fundação, é responsável pela emissão de aproximadamente 45% do total das emissões globais de gases do efeito de estufa e produz cerca de 53 milhões de toneladas de fibras têxteis, sendo que 70% acaba em aterros sanitários.

Por todos estes motivos é urgente, tal como refere parte do slogan da FashionHub Portugal, “unir as marcas aos consumidores”, para se repensar a moda, tanto nas práticas de produção, como o consumo, o marketing, estratégias de vendas e distribuição. Porém, tudo isto acarreta desafios…

Os desafios do upcycling

Não lhes vou chamar “aspetos negativos”, porque na minha perspetiva não são. Prefiro apelidá-los de “desafios”, e são muitos os que as marcas que se dedicam ao upcycling enfrentam diariamente. Um dos principais desafios da moda upcycled tem a ver com o facto de ser um dos tentáculos da slow fashion, ou seja, produz em menor quantidade e, a somar a isto, acrescenta-se o facto de apenas utilizar a matéria-prima que estiver disponível em determinado momento, que pode nem sempre assegurar a produção.

Deste modo, as marcas que utilizam a técnica upcycling, necessitam de encontrar soluções para garantir a sustentabilidade do negócio quer seja a nível ambiental e social, mas também económico, ao garantir o alinhamento coerente dos custos de produção e preços ao consumidor, sem comprometer a individualidade e a criatividade.

Outro desafio das marcas, pode ter a ver com a perceção que o consumidor (falando de forma abrangente e não apenas da geração Z), pode ter sobre a qualidade da moda upcycled. Para ultrapassar esta barreira é necessário inovar e educar o consumidor.

Vantagens da técnica upcycling

O upcycling é uma solução inteligente e lucrativa para marcas e para os consumidores, porque o que seria desperdício torna-se num novo produto para venda. Além disso, agrega criatividade, durabilidade e personalização, ao produzir peças de roupa únicas, é difícil que haja outra igual. As principais vantagens do upcycling são:

  • Fomenta o consumo consciente e mais responsabilidade ambiental.
  • Reduz o consumo excessivo e o desperdício têxtil.
  • Diminui a poluição ambiental.
  • Minimiza a quantidade de resíduos gerados.
  • Reduz a necessidade de consumir novas matérias-primas.
  • Abranda a extração desenfreada de recursos virgens da natureza.
  • Modera o uso de água e de energia.
  • Reduz a emissão de gases do efeito de estufa.
  • Prolonga a vida útil dos materiais.
  • Potencia a circularidade dos produtos em fim de vida.

Moda Upcycled em Portugal

Em Portugal, para acompanhar a demanda da moda upcycled, há imensas oficinas e workshops especializados em upcycling, tanto para marcas e profissionais de design de moda, como para cidadãos comuns, curiosos por aprender mais e, num nível avançado, personalizarem as suas peças com esta técnica. Deixo para falar sobre isto de forma mais profunda e dar-vos exemplos de oficinas num próximo artigo.

A moda upcycled em Portugal assume diferentes perspetivas: marcas emergentes que trabalham cada vez mais as suas peças a partir do reaproveitamento têxtil, mas há também marcas do segmento moda de autor que começaram a investir em projetos e coleções com esta técnica, como o designer consagrado Dino Alves, que em 2022 lançou a marca 2nd Upcycled Label em parceria com uma loja de pronto-a-vestir masculino, Mister Man. A Béhen, da designer Joana Duarte, já lançou diversas peças tendo em consideração a técnica upcycling e a reciclagem de materiais, mas também uma parceria upcycling com a Levi´s.

O destaque deste artigo vai para o trabalho de duas marcas portuguesas que ainda estão a adaptar-se ao mercado, a Grita e a Vortex – com uma entrevista às fundadoras das marcas, Cristina Garcia e Catarina Amaro, respetivamente.

O objetivo é analisar, fazendo as mesmas questões a ambas, como é que estas duas marcas que, apesar de distintas, viram uma oportunidade de criar moda upcycled em Portugal.

A Grita dá uma segunda vida a panos e toalhas, que por norma compõem o ambiente da cozinha das nossas casas, transformando-os em delicadas blusas com alguns bordados e detalhes.

Grita

A Vortex é uma marca emergente, criada por Catarina Amaro, designer independente que produz as suas criações através de deadstock ou de produtos em segunda mão. A marca assume uma identidade arrojada ao explorar diversas peças de ganga, com uma desconstrução irreverente, criando saias, casacos, camisolas, entre outras peças.

Entrevista à fundadora da GRITA, Cristina Garcia

A Grita é uma marca portuguesa fundada por Cristina Garcia, em 2020. Na altura, a fundadora da marca estava em processo de mudança de Lisboa para Serpins, mesmo no início da pandemia. Numa época atípica, Cristina descobriu uma paixão, bastou comprar uma máquina de costura e inscrever-se num curso da Cearte. Sem nenhuma base na área da moda tinha apenas muita vontade de se distrair e aprender. De resto, já podem imaginar o que aconteceu: “Em Março do ano passado resolvi fazer a experiência e lancei um drop com 6 peças e em 24 horas consegui vender todas. Foi o sinal de que devia investir mais a sério na Grita. Decidi então lançar um drop todos os meses”, refere Cristina Garcia à FashionHub Portugal.

Grita

O que serviu de inspiração e motivação para olhar para um tecido e querer reaproveitá-lo dando origem a uma nova peça?

Cristina Garcia (CG): Eu sempre gostei muito de feiras e de tecidos antigos, com história. Ao longo do tempo fui guardando vários desses tecidos que fui comprando em feiras e também fui guardando vários da minha família feitos pelas minhas avós e tias. Quando comecei a costurar foi neles que fui pegar para fazer algumas peças. Fiz a primeira blusa com uma toalha de chá comprada numa feira e foi um sucesso. Atualmente a minha inspiração vem de muitos sítios e de coisas que vou vendo e absorvendo mas creio que a vila onde estou, Serpins, é uma grande fonte de inspiração pelo contacto próximo que tenho com a natureza (vivo mesmo em frente ao rio Ceira). Serpins acabou por, naturalmente, tornar-se o cenário da Grita por isso quando termino uma peça procuro sempre tirar fotografias ou fazer vídeos onde se ouve o rio a correr, o vento, as aves…

É mesmo tudo produzido à mão por si, ou tem apoio/parceria com alguma fábrica e/ou costureiras?

CG: É tudo produzido à mão por mim com apoio da minha mãe. A minha mãe ajuda-me em duas etapas essenciais: tirar nódoas difíceis que não consigo anular e a disfarçar sinais de uso e desgaste com novos bordados. Por vezes, ajuda-me também nos acabamentos das peças.

Grita

Qual é a maior dificuldade que sente ao desenvolver o seu trabalho?

CG: A maior dificuldade que sinto neste momento é conseguir aumentar a minha produção de forma a ter mais variedade e tamanhos nos drops que vou lançando.

Na sua opinião, qual é a importância das marcas olharem para resíduos deadstock como uma oportunidade?

CG: A indústria da moda é a segunda mais poluente, sendo responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono no planeta. Reutilizar deadstock ajuda a reduzir os impactos ambientais do setor. Por outro lado, são também uma oportunidade de criar peças especiais e diferentes. Os tecidos que a Grita utiliza muito provavelmente tinham como destino os aterros sanitários. O processo de aproveitamento desses tecidos usados, por um lado, quebra esse ciclo poluente, por outro lado, dá um novo significado a tecidos que, apesar de acabarem abandonados ou “deitados fora” têm um grande valor. Muitos foram bordados à mão e implicaram muitas horas de trabalho e dedicação apesar de nem sempre esse trabalho artístico ser reconhecido. A Grita procura que esses tecidos, quer seja uma toalha de mesa, uma fronha de almofada, uma cortina possam agora ser mostrados ao mundo como se de uma obra de arte se tratasse.

Entrevista à fundadora da Vortex, Catarina Amaro

A Vortex é uma marca emergente, criada por Catarina Amaro, designer independente que sempre viu na roupa uma forma de expressão e de construir a sua personalidade. Em 2023, decidiu comprar uma máquina de costura e “foi um marco gigante na minha evolução, com vontade e motivação para trabalhar nas minhas ideias”, refere a fundadora da Vortex à FashionHub. Assim, em julho de 2024, nasceu a Vortex.

Vortex

O que serviu de inspiração e motivação para olhar para um tecido e querer reaproveitá-lo dando origem a uma nova peça?

Catarina Amaro (CA): Desde muito cedo que nutro paixão pela beleza das coisas, desde atitudes ou formas de estar. Vestir-me é uma ferramenta extremamente poderosa e pessoal para me afirmar. O ato de usar determinada peça com uma intenção, envolve todas essas componentes, que me tornam uma pessoa sensível e apaixonada. A roupa, mas essencialmente quem, e como a veste, sempre me cativaram como característica de uma identidade própria, e individual. Neste sentido, eu recordo-me bastante bem de reaproveitar todo o tipo de tecidos que encontrava em casa para criar os looks para as minhas bonecas Bratz, de desenhar coleções que as tornassem únicas entre si, muito antes de ter presente em mim o conceito de Upcycling. Penso que, vou reinterpretando esse termo à minha maneira, com maior ou menor conhecimento… Sempre gostei de alterar e reconstruir peças de roupa, e poder dar continuidade e forma a essa ideia de identidade.

É mesmo tudo produzido à mão por si, ou tem apoio/parceria com alguma fábrica e/ou costureiras?

CA: Sem contar com as etiquetas, feitas sobre o tecido, em serigrafia, todas as peças que apresento são idealizadas e produzidas por mim, no meu estúdio. Nunca trabalhei ou colaborei com nenhuma fábrica, ou costureira, nunca senti essa necessidade. Cada peça que eu crio e reaproveito é única, e acaba por requerer um processo de criação mais ou menos distinto. Como marca emergente assente nos princípios da slow fashion, eu valorizo o processo, um stock limitado, e acredito no valor de cada peça que produzo, não estando focada numa criação em massa ou na rapidez dos resultados. De qualquer modo, se um dia investir num apoio à produção, irei apostar em meios locais, vincando a transparência do processo e a contrariar o desperdício.

Vortex

Qual é a maior dificuldade que sente ao desenvolver o seu trabalho?

CA: Em termos de logística, às vezes sinto que é difícil conseguir adquirir os materiais que idealizo para a confeção das minhas peças, porque costumo usar, quase exclusivamente, materiais reutilizados nas criações para a VORTEX: opções em segunda mão, restos  de tecido e de desperdício de material. Por vezes, isto pode condicionar o processo… O que pode ser um fator positivo – já que tenho liberdade para explorar, escolher e alterar as opções – outras vezes torna-se uma questão negativa, já que estou à mercê dessa aleatoriedade, e o processo pode se tornar algo mais cansativo.

Na sua opinião, qual é a importância das marcas olharem para resíduos deadstock como uma oportunidade?

CA: Como designer independente e focada na criação de peças através do processo de upcycling, estou constantemente à procura de materiais distintos que possibilitem criar e alterar peças de modo inovador, criativo e sustentável. Neste sentido, o deadstock torna-se uma opção extremamente interessante e representa um meio eficaz de reaproveitar resíduos com qualidade, que de outro modo seriam descartados e constituiriam desperdício. O modelo circular está cada vez mais presente na indústria, e eu interpreto-o como uma necessidade, além de que surge como mais-valia para, como é o meu caso, para pequenas marcas e designers que procurem materiais para as suas próprias produções. O facto de o deadstock ser limitado incentiva o desenvolvimento de criações exclusivas, não passíveis de ser replicadas em massa. No contexto da técnica upcycling, e enquanto designer de peças únicas, isto surge como uma verdadeira oportunidade, potenciando os resultados do trabalho em vários sentidos.

As marcas adaptam-se a diferentes estilos

Através do conceito de cada marca e das imagens dos produtos, conseguimos perceber que o estilo de cada uma é bem diferente. Contudo, partilham dos mesmos valores: paixão pela moda e pela criação, assente em valores de circularidade, para gerar o menor impacto ambiental possível durante o processo de produção das suas peças.

O objetivo principal deste artigo é provar que uma proposta de valor semelhante, mas um produto completamente distinto, permite perceber as oportunidades infinitas de aplicabilidade da técnica upcycling, em diversos materiais. As marcas podem produzir o que quiserem de forma upcycling, adaptando-se a diferentes estilos, valores e identidade. Esta identidade definirá a marca, mas também os seus utilizadores. Claro que, tal como vimos neste artigo, há desafios que, sem resiliência, podem tornar-se obstáculos no desenvolvimento destas marcas: como a necessidade de investimento numa produção em fábrica; a seleção da matéria-prima mais adequada e suficiente para determinada peça; lançarem mais peças e em tamanhos diferentes, para permitir o melhor desenvolvimento das suas marcas; e, claro corresponder a tudo isto, sem quebrar os requisitos principais da moda upcycled, não caindo nas garras da “moda rápida”.

Nota: não é dispensada a consulta das páginas de Instagram das marcas @ vrtxstd (Vortex) e @ grita_feiraemserpins (Grita), assim o website gritaserpins.com, para acompanhares as novidades das marcas e confirmar o stock disponível.