Não se faz Moda sem Liberdade: a revolução da indumentária antes e depois do 25 de Abril de 1974

Neste artigo, apresentamos a Moda em Portugal durante e depois do 25 de Abril de 1974: o movimento da mudança com o pronto-a-vestir; a inspiração além-fronteiras; o surgimento da Moda de Autor; a cultura pop como símbolo de uma nova Era da sociedade.

Não se faz Moda sem Liberdade.
A Moda é um espelho da sociedade, atualmente refletida em homens e mulheres que podem ser o que quiserem e vestir o que bem entenderem. A Moda em Liberdade é uma consequência do trabalho de tod@s, desde designers, criadores e as suas respetivas equipas, até os restantes intervenientes que permitem a possibilidade de expor o seu talento e criatividade sem censura, respeitando os valores da democracia.

No entanto, nem sempre foi assim tão claro e simples vestir o que quiséssemos, trabalhar e participar da vida em sociedade, tal como a conhecemos hoje, principalmente para as mulheres e os que nasceram antes da Revolução de 25 de Abril de 1974.

Durante 48 anos (1926-1974), Portugal viveu num regime de ditadura com uma sociedade oprimida, onde se prezava pela “moral e os bons costumes” e o lema “Deus, Pátria e Família”, ecoava nas casas portuguesas.

No entanto, Portugal parecia pertencer a um mundo à parte. No início da ditadura, diversas cidades europeias e os Estados Unidos da América, passavam por uma transformação política, social, cultural e económica, em que a moda teve um papel preponderante. A década de 1920 ficou marcada pelo American Way of Life (estilo de vida americano), também apelidados de “loucos anos 20”: os cabarets e o jazz eram os protagonistas da vida boémia, numa época em que a mulher começava a participar da vida noturna. A Moda desta altura diminuiu o comprimento dos vestidos, explorou as rendas em peças de roupa que colocavam à prova a sensualidade da silhueta feminina. Na política, os movimentos sufragistas conquistavam resultados e as mulheres conseguiram o direito ao voto e puderam ingressar no mercado de trabalho.

A partir daqui, anos mais tarde, entre a década de 1950 e 1960, a moda alcançou novos feitos. Primeiro com a introdução do blazer na indumentária feminina, sendo que a peça, até então exclusiva do guarda-roupa masculino, se popularizou entre as mulheres que ocupavam cargos profissionais cada vez mais relevantes. Por outro lado, como símbolo de libertação, a estilista Mary Quant popularizou as minissaias. Ainda na década de 60, Os Beatles eram “mais populares do que Jesus Cristo”, tal como referiu John Lennon, contudo, devido a esta afirmação foram boicotados pela Rádio Renascença, em Portugal.

Por isso, voltemos à realidade da ditadura em Portugal, onde o papel da mulher na sociedade era redutor e apenas adquiria significado quando casava e tinha muitos filhos. Porém, tanto a roupa de homens e mulheres estava envolta em regras onde prevalecia o conservadorismo. As viúvas eram obrigadas a utilizar trajes específicos e lenços a cobrir a cabeça. Os homens tinham de usar o figurino de virilidade desenhado pelo regime, no entanto, com muito menos restrições.

A 5 de maio de 1941, o governo português instituiu a publicação do Decreto-Lei n.º 31 247, em que explicitava que “nos termos da Constituição, pertence ao Estado zelar pela moralidade pública e tomar todas as providências no sentido de evitar a corrupção dos costumes.”

Enquanto os jovens de outros países tinham acesso a tendências de moda e a novos estilos e movimentos culturais, os jovens portugueses continuavam a vestir-se nas mesmas lojas “recatadas” onde iam os seus pais e até os avós. Também recorriam a modistas e alfaiates, sempre que a ocasião exigia maior formalidade.

Na FashionHub Portugal, é recorrente dizermos que “a Moda é Arte, Cultura, Política, Economia… Mais do que um estado de espírito é poder ser o que quisermos!”

Neste artigo, apresentamos a Moda em Portugal, durante e depois do 25 de Abril de 1974: o movimento da mudança com o pronto-a-vestir; a inspiração além-fronteiras; o surgimento da Moda de Autor; a cultura pop como símbolo de uma nova Era da sociedade.

Movimentos de mudança

No meio de uma sociedade oprimida por um regime repressivo, havia figuras que tentavam remar contra a maré e que através do papel disruptivo da moda, a usavam como mecanismo político e social. Estes movimentos de mudança, vamos chamar-lhes assim, marcavam o início de uma transformação, que apenas ganharia consistência com o 25 de Abril de 1974.

Como algumas destas figuras emblemáticas, destacaram-se os Irmãos Porfírio – António, Augusto e Luís – que tinham uma reconhecida loja de meias na Baixa de Lisboa, mas deram lugar a um novo negócio.

Assim, a Porfírios Contraste nasceu em 1965, uma loja de pronto-a-vestir, que apresentava as tendências mais ousadas e modernas que se vestiam em Londres e Nova Iorque. Nos dias de hoje, seria o equivalente a uma Zara e tantas outras cadeias de fast fashion, devido aos preços mais acessíveis e às tendências galopantes que despertavam o desejo de consumo de centenas de jovens.

A loja existia nas duas grandes cidades do País, na Rua Vitória, em Lisboa e na Rua de Santa Catarina, no Porto.

A inovação não se fazia apenas através das roupas e vitrines, mas sim todo o espaço envolvente desde a fachada à decoração no interior, claramente inspirada na Carnaby Street, a famosa rua de Londres, símbolo da moda e irreverência durante os anos 60. Na Porfírios, os dois pisos eram ligados por uma escada em caracol, havia luzes psicadélicas e muita música pop-rock – na loja do Porto, havia mesmo uma cabine que permitia escutar discos, com músicas que em tempo de ditadura não chegavam aos ouvidos de todas as pessoas, sem passar pelo lápis azul da censura. Portanto, a Loja Porfírios marcou a Moda e a Cultura do final dos anos 60 e início dos anos 70.

Nos expositores, encontrava-se um estilo totalmente diferente do que até então se vestia em Portugal: calças de ganga à boca de sino, camisas estampadas com cores fortes para ambos os sexos, collants opacos coloridos e sobretudo muitas minissaias, cada vez mais curtas.

Tudo era inspirado nas boutiques londrinas e, curiosamente, praticamente todas as peças eram produzidas nas fábricas têxteis do Norte de Portugal.

Além do seu papel que permitiu quebrar estereótipos e barreiras de preconceito de género, a Porfírios foi um dos primeiros casos de sucesso no Marketing, com diversos eventos e promoções para captar a atenção de mentes mais conservadoras, mas também para captar a atenção dos jovens da altura. As filas em dias de saldos eram mesmo intermináveis e um dos eventos organizados foi um concurso de Miss Minissaia.

Contudo, a fama da Loja Porfírios Contraste não era vista com bons olhos por todas as pessoas.

Em 1967, num Verão que ficou marcado para a História como “Summer of Love“, em boa parte devido ao apogeu dos movimentos hippies nos Estados Unidos, a revista semanal Flama (de inspiração católica) escrevia em tom depreciativo:

Repentinamente uma lojeca duma transversal entre a Rua do Ouro e a Rua Augusta, que durante anos e anos vendeu modestamente meias e peúgas, transformou-se radicalmente. Passou a vender baratíssimo camisas berrantes como as lá de fora. Calças boca de sino, casacões esquisitos, mini-vestidos. As empregadas encolheram não só na saia mas também na idade e houve bichas. Foi uma loucura.

Anos antes, ainda em 1952, também a revista Menina e Moça, um dos órgãos mais fiéis e credíveis da Mocidade Portuguesa Feminina, escreveu um manifesto implacável sobre como as mulheres deveriam usar o traje de banho: “O fato de banho é… para tomar banho. Não andes a passear com ele, nem te deites na areia em posições descompostas.” No entanto, nesse tempo, já o biquíni era usado nas praias de Miami e Saint Tropez.

Em 1962, a greve estudantil na Universidade de Lisboa mostrou ao regime que as novas gerações estavam dispostas a lutar pela democracia. Na música, bandas pop-rock como os Sheiks, Chinchilas ou o Conjunto Académico João Paulo foram uma alternativa ao nacional-cançonetismo que dominava os Festivais RTP da Canção e as rádios portuguesas, levando também ao surgimento das rádios pirata durante os anos 60, onde se passava música que não era do agrado do regime. Em 1971, realizou-se a primeira edição do Festival Vilar de Mouros, cujo cartaz contou com nomes fortes da música internacional, como o britânico Elton John e Manfred Mann.

Embora a democratização da moda trazida pelo pronto-a-vestir, mais concretamente, pelos Irmãos Porfírio tivesse começado durante a primavera Marcelista (1968-1974) e tendo a mudança de hábitos de consumo acontecido de forma gradual nas principais cidades do país, como Lisboa, Porto e Coimbra, onde havia focos da juventude universitária. Foi apenas nos anos seguintes à Revolução de 25 de Abril que surgiram as mudanças mais profundas.

Mudam-se os tempos, muda-se o estilo: a Moda no Pós-Revolução

As tendências de África

Em 1975 começavam a chegar a Portugal continental milhares de portugueses oriundos das ex-colónias de África, prestes a tornarem-se países independentes, como Moçambique e Angola. O clima nem sempre foi agradável, devido aos olhares desconfiados que os habitantes da então “metrópole” viam os hábitos mais livres dos recém-chegados, principalmente na moda, que era um dos aspetos mais visíveis. Estes “novos habitantes” vestiam tecidos em cores vibrantes, a pele estava mais descoberta, os biquínis eram usados com naturalidade pelas senhoras da época, o cinema era bem menos censurado, traziam novas danças, novos sabores e a Coca-Cola, cuja venda estava proibida pelo Estado Novo.

ModaLisboa

Com a revolução de 1974 não se mudaram mentalidades num estalar de dedos, e muito menos com a assinatura de um decreto, mas abriu-se a porta de Portugal ao mundo. Um mundo repleto de oportunidades, em que não valia a pena apontar o dedo a quem ainda lhe resistia, afinal, viver 48 anos sob opressão e reprimido, instituiu uma certa normalidade de conceitos e valores, que não se conseguiriam alterar de um momento para o outro, principalmente, entre as gerações mais velhas.

A moda de Autor

Das ex-colónias, além de tendências, chegaram pessoas de diversas áreas da Cultura, Ciência, Letras, mas também da Moda.

De Angola, cuja indústria têxtil era transcendente à data da Revolução, chegariam nomes que viriam a dar cartas na Moda em Portugal nos 20 anos seguintes. Foram os casos de Augustus, José Carlos (famoso pelos looks criados para as Doce) e Maria Armanda.

Assim, surgia em Portugal o conceito de Moda de Autor. Augustus tinha um atelier em Luanda, depois de ter frequentado um curso de formação na Olympian Fashion School, em Londres e de ter estagiado com Kenzo. Já em Lisboa, abriu a sua primeira loja em 1976 e destacou-se pelas ações de marketing arrojadas. A mais reconhecida aconteceu em 1979, quando surpreendeu tudo e todos, até quem era da área da moda, ao apresentar uma coleção a bordo de um avião da TAP, ação que o tornou conhecido a nível nacional e internacional.  

Por outro lado, nesse princípio da década já a música pop-rock nacional conquistava audiências e as propostas ousadas dos Porfírios passaram a ter concorrência em boutiques como “Maçã” (a primeira loja de Ana Salazar, situada na Praça de Alvalade).

Dois anos antes da Revolução, já se fazia fila à porta da conceituada boutique de Ana Salazar, uma das figuras centrais da moda portuguesa e pioneira na irreverência e na transformação do padrão convencional da moda, com inspiração no punk de Vivienne Westwood.

Após o 25 de Abril, tornou-se democrático o uso de calças à boca de sino, das peças de ganga, as mulheres vestiam calças e saias mais curtas. E, além da liberdade do que vestir, as mulheres também adquiriram o direito ao voto, viajar sem autorização do marido, entrar no mercado de trabalho, entre outras coisas tão banais como ir à praia de biquíni, ler o livro que quiser e dançar a sua música preferida livremente.

Do outro lado do oceano Atlântico

As telenovelas brasileiras e os filmes de Hollywood tiveram um papel fulcral na construção de tendências de moda e da mudança de mentalidade conservadora e comandada pelo medo, que se viveu até Abril de 1974.

Em 1977, a produção da Rede Globo de Televisão, Gabriela, Cravo e Canela, transmitida pela RTP, surpreendeu tudo e todos. Não foi apenas com a nova forma de representar e contar uma história no pequeno ecrã, mas também com outros modos de viver a sensualidade e o corpo.

Com a televisão a cores, nos anos 1980, a telenovela Dancing Days trouxe tons fluorescentes e brilhos a que muitos jovens aderiram com entusiasmo.

A atriz norte-americana Elizabeth Taylor, entre outras, tornou-se um ícone de estilo para as mulheres portuguesas durante a década de 70.

As artes e a música: como a cultura pop influenciou a moda

Se o pop-rock de Londres ajudou a inspirar Portugal antes do 25 de Abril, imagine-se os artistas portugueses que vingaram no pós-revolução.

Os anos 80 marcaram um ponto de viragem na moda e na música nacional.

A cultura pop-rock trouxe nomes como Doce, António Variações, Heróis do Mar, GNR, além de artistas que já levavam o nome de Portugal além-fronteiras e resistiram à ditadura, como caso da fadista Amália Rodrigues. Amália foi mesmo uma figura controversa durante a ditadura, apelidada de “cantora do regime”. foi acusada de servir a ditadura e colaborar com a polícia política (PIDE), foi perseguida após 25 de Abril de 1974, reconquistando depois a unanimidade enquanto voz de Portugal no Mundo.

A moda com cor, brilhos e acessórios exagerados marcou os anos 80. No final dessa década (em 1988) surgiam no mercado três novas revistas femininas, em que a Moda tinha um relevante papel: a Máxima, Elle e Marie Claire. Assim como jornais que começavam a surgir e dedicavam espaço para falar de modelos, novos fotógrafos e novos criadores, sendo importantes órgãos de comunicação para reconhecer o setor da Moda. Estava lançado o mote para a primeira edição da ModaLisboa, que se realizou em 1991 e marcou definitivamente o percurso da Moda em Portugal. Muitos dos nomes da moda nacional aclamados até hoje apresentaram as suas criações na passarela nessa primeira edição: Ana Salazar, Luís Buchinho, Nuno Gama, José António Tenente, Alves/Gonçalves, Manuela Gonçalves.

A partir daqui, a moda continuou provar que é um termómetro do estado da sociedade.

“A Moda é Arte, Cultura, Política, Economia… Mais do que um estado de espírito é poder ser o que quisermos!” – FashionHub Portugal.