Entrevista: Márcia Nazareth criou uma marca que reaproveita ‘deadstock’ têxtil com criatividade

A HISTÓRIA QUE MARCA: A Nazareth foi fundada em 2013, por Márcia Nazareth. A designer gráfica decidiu avançar com o projeto depois de encerrar a atividade da sua agência de design e comunicação, para dedicar-se a outra das suas paixões: usar a criatividade para fazer roupa.

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A marca Nazareth foi fundada em 2013, por Márcia Nazareth. A designer gráfica decidiu avançar com este projeto depois de encerrar a atividade da sua agência de design e comunicação, para dedicar-se a outra das suas paixões: usar a criatividade para fazer roupa.

A FashionHub foi até ao Showroom da marca portuguesa, no espaço 10 do Mercado Municipal de Matosinhos, para uma conversa inspiradora com Márcia Nazareth, que nos recebeu a meio de mais um dia atarefado entre visitas a fábricas, para preparar as próximas criações.

A fundadora da marca abordou o seu percurso académico em Design Gráfico e a forte ligação que tinha com as suas avós, Luz (materna) e Aurora (paterna) que considera as suas principais referências e inspirações. A avó materna de Márcia foi uma das primeiras empreendedoras a ter uma fábrica de plissados em Portugal, a avó paterna era mestra de guarda-roupa no Teatro Experimental do Porto.

Facilmente se percebe a origem do gosto pela criação, por isso descobre mais sobre a mulher empreendedora e a marca de produção nacional em que as riscas são uma identidade e onde nenhum tecido se perde, todos se transformam.

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A História que marca – Nazareth

No website da marca confessa que as suas avós foram uma fonte de inspiração. Como é que surgiu a ideia de criar a Nazareth?

Márcia Nazareth: A marca existe há 11 anos, mas já sou empreendedora ainda antes da Nazareth existir. Sou designer gráfica, tirei o curso na Faculdade de Belas Artes do Porto. Eu sempre estive ligada à parte criativa (risos), trabalhei alguns anos em agências de comunicação, até que fundei a minha própria agência ligada ao design e à comunicação. Na crise económica de 2009 encerrei atividade e, em 2013, criei a Nazareth. No fundo a Nazareth já estava incubada em mim, porque eu sempre tive a experiência de lidar com avós muito criativas. A minha avó materna tinha um atelier com as primeiras criações de saias plissadas, sacos-cama e anoraques, vindos de reaproveitamento têxtil italiano… (pausa) Os meus avós não tinham muito medo de criar peças novas e eu acho isso incrível, principalmente na altura deles em que não havia internet e tantas outras coisas e, mesmo assim, faziam muitos quilómetros de carro até Milão, para ir buscar o que consideravam ser a componente principal nas peças – a matéria-prima. A minha avó paterna era mestra de guarda-roupa de um teatro, portanto, o atelier dela era um laboratório: havia colas, arames, roupas do século XVI, entre reis e rainhas, astronautas… (pausa) Portanto, com estas duas influenciadoras (risos) foi muito mais fácil por em prática, aos meus 40 (anos), a ideia da Nazareth.

No Showroom da Nazareth estão objetos que pertenceram às avos de Márcia, como este cadeirão. | FashionHub

Ainda sobre o desenvolvimento da Nazareth… Em 11 anos muitas coisas mudaram no panorama dos negócios, na Indústria de Moda e até mesmo da vida em sociedade. A marca Nazareth acompanhou essas alterações de que forma? Existiu alguma transformação dos valores da marca?

MN: A Nazareth começou por ser ‘Nazareth Collection’ porque eram coleções temáticas. Na altura a Nazareth era feita através da minha paixão pela fotografia. Os estampados das peças eram fotografados por mim, alguns por drone e depois era impresso a 360 graus nas roupas, ou seja, o conceito era vestir uma fotografia. Por isso, existiram coleções sobre o Porto, Lisboa, o Fado, depois aventurei-me por Berlim… (pausa) Estava focada em fazer com que a Nazareth pertencesse a um nicho de mercado do design de autor e fazer peças que não fossem tão comerciais, mas edições limitadas. Nessa altura, já com uma vertente de sustentabilidade muito vincada porque as peças eram todas impressas em lyocell, que é uma fibra regenerada e comecei a trabalhar com parceiros que tinham preocupação ambiental com a produção e as tintas, tudo certificado.

Mas este é um processo muito longo e muito complicado, que a certa altura não fez muito sentido a nível de sustentabilidade financeira para a marca, porque para eu fazer uma peça tinha de fazer trezentas unidades e, portanto, eu estava a ir pelo caminho que não queria e tornou-se inviável. A marca foi evoluindo, como qualquer ser humano (risos) e houve uma reviravolta em 2018-2019, em que eu comecei a produzir com deadstock. Cada vez que eu fazia pesquisas sobre novas matérias-primas, apercebia-me da quantidade que é largada por desperdício têxtil, porque todas as coleções de grandes marcas abandonam muita matéria-prima, que está boa, não está danificada e está pronta para ser utilizada novamente. Daí ter começado a repensar o modelo de negócio e ter construído peças feitas a partir de deadstock.

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Sobre a utilização de deadstock. Todas as peças são produzidas através de deadstock ou apenas algumas de determinada coleção?

MN: Não, Não. Todas! Um dos grandes parceiros da marca é a Tintex, uma fábrica que sabe muito e é alinhada com os princípios da Nazareth, quer a nível de malha, fiação e tingimento. Eu reaproveito muita matéria-prima e na Tintex até têm lá um corner só de riscas Nazareth (risos), ou seja, já perceberam que há uma tendência de eu ir procurar riscas das malhas deles. Tem sido um bom parceiro a nível de malhas, trabalho também com outros porque nem sempre têm todos os tecidos disponíveis (na Tintex). Eu faço um patchwork (risos) de alguns fornecedores que se enquadram com as peças que eu quero fazer. A Nazareth não tem coleção primavera-verão, nem outono-inverno. As transformações climáticas estão aos olhos de toda a gente, tanto estamos a vestir uma t-shirt em dezembro, como uma camisola em agosto, portanto, é bom que as pessoas percebam isso e que se adaptem a isso. Cada vez mais crio peças cápsula, um conjunto de peças que não perfazem uma coleção, mas faz sentido naquele momento produzi-las porque encontrei a matéria-prima certa e as quantidades certas.

Já deu para perceber que a Nazareth é uma marca onde “nenhum tecido se perde, todos se transformam”. Há sempre criatividade para aproveitar o que sobra de tecido?

MN: (risos) O deadstock, para mim, existe devido a uma falha de design, porque se sobrou é porque o corte e a forma de reaproveitamento de toda a coleção não foi bem feito. Essa falha faz com que sobre mais tecido ou malha e essa quantidade de matéria-prima que sobrou pode não dar para fazer a mesma peça que foi feita até ali. Por exemplo, no caso dos camiseiros foi preciso 3,60m ou 3,70m de tecido, já não sei precisar… Mas há sobras desse tecido, que pode não dar para fazer um camiseiro, mas dá para fazer outra peça. Neste caso deu para fazer estas blusas cai-cai (na imagem abaixo), sobrou 1,10m ou 1,20m, mas é suficiente para fazer outra peça, não tão grande e comprida, mas é outra peça do que sobrou. Provavelmente ainda dava para fazer uns lenços. Enfim, eu acho que gastar até não haver desperdício é a melhor forma de nós estarmos alinhados porque é o que se pretende. E há sempre forma de fazer peças novas, sempre!

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As “riscas Nazareth” são quase uma identidade da marca. Foi algo planeado ou surgiu por acaso?

MN: Eu recebo imensas mensagens das pessoas quando veem riscas, ou quando veem alguém vestido com riscas. (risos) É ótimo, porque realmente se identificam e identificam a marca!

Desde pequena e comecei a escolher as peças de roupa com que me vestia tive uma tendência para usar riscas. (risos) Eu adorava misturar quadrados com riscas, coisas que não combinavam, mas que eu achava giro. A risca sempre esteve no meu ADN.

Aqui está a forma como a Nazareth tenta explicar “não tenhas medo de construir e de aproximar coisas que à partida tu achas que não vão ficar bem juntas.” A vida já é séria demais (risos)… Vestir é o nosso cartão de visita, como nos vestimos e apresentamos torna logo tudo mais leve, mais alegre, mais descontraído. E isso, é outra coisa que em todas as peças eu acho que é importante, que as pessoas sejam mais leves, não só a consumir, mas a misturar essas peças todas.

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A Nazareth pratica a moda consciente sob diversas formas, por exemplo, os vestidos reversíveis fazem imenso sucesso...

MN: É outra componente de sustentabilidade, uma pessoa compra uma peça e tem duas. Eu tento ser o mais autêntica possível e explicar ao consumidor e à minha comunidade que essa transparência é genuinamente verdade. Eu nem sempre posso fazer essas peças (vestidos reversíveis) porque não tenho matéria-prima apropriada para isso. Quando eu digo “eu encontrei esta malha”, é mesmo isso! Eu só depois de ver os ingredientes é que consigo ter a receita do que vai ser o almoço ou o jantar (risos), consigo perceber se vai dar para fazer mais blazers, vestidos ou t-shirts, consoante aquilo que existe. É uma peça (vestido reversível) que já foi feita várias vezes na Nazareth, é o mesmo modelo, mas é uma peça que não é tendência. Isto é outra coisa que eu tento, é que a marca não esteja muito presa às tendências, ao que é moda… (pausa) Eu acho que nós temos de construir um armário que seja intemporal e versátil. Quantas vezes vamos ao armário das avós ou das mães e dizemos: “está aqui este casaco maravilhoso, apetece-me usar”, Já tem 30, 40 ou 50 anos (risos) e, portanto, a moda é um ciclo. Eu não gosto de lhe chamar moda porque parece que as peças acabam. Uma boa modelagem é intemporal.

O lema da Nazareth é “For Gentle Women” – “Para Mulheres Gentis”. Qual é a mensagem que pretende transmitir?

MN: É a pergunta que eu mais adoro! (risos) Estamos a falar de valores e uma marca sustentável tem que fazer bandeira disso: sobre a forma como produz, seja com deadstock, com matéria-prima que está a escoar menos; ou com matéria-prima mais amiga do ambiente. Mas estamos a falar sobretudo da maneira como produzimos, se a cadeia de valor está apropriada sobre as condições em que os trabalhadores trabalham. Estamos a falar de ser gentil com o ambiente, ser gentil com a nossa família e mostrar os nossos valores. Há aqui uma série de emoções que nós não podemos esconder porque são verdadeiras. A Nazareth tenta fazer isso de uma forma natural, se formos gentis… (pausa) as coisas são mais transparentes. O facto de uma peça circular num armário para a minha filha ou para a minha mãe, isso é gentileza. Essa peça ainda está nova e consigo passá-la para outra pessoa, seja da família ou não. Estes valores são uma forma de ser gentil, de pensarmos e consumirmos. Daí eu focar-me bastante em utilizar essa palavra. (risos)

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Um dos aspetos que considerei bastante relevante quando estava a estudar sobre a marca, foi ter lido que existe no Showroom um ponto de recolha de peças para a reciclagem. Ainda existe? Como é que é feito esse processo?

MN: Por acaso é uma questão com bastante trabalho pela frente. A maior parte das clientes sabem que podem trazer as peças que estão em fim de vida. O que é fim de vida? Podem estar danificadas ou com algum furo, estar mais desgastadas das lavagens, mas há aqui um ponto de recolha para que as consiga fazer chegar às entidades certas. O que eu estimulo muito é que essas peças sejam também recicladas pelas próprias clientes, que as consigam vender em segunda mão, recortar e fazer outro modelo, como um cai-cai, uns calções, um lenço (risos), para elas usarem a criatividade.

Sobre arranjos, a Nazareth também tem esse apoio pós-compra?

MN: Quase todas as peças que sejam motivo de arranjo, eu tento. Sou eu própria que volto a levar à equipa de costureiras que trabalham connosco. As senhoras são amorosas e têm um know-how enorme de aperfeiçoar e fazer sempre melhor. É incrível! Demorou muitos anos para encontrar esta equipa, em que estamos unidas em várias frentes, e elas arranjam sempre forma de que tudo seja reaproveitado para eu entregar a peça novamente arranjada à cliente.

O futuro da Nazareth

Para Márcia Nazareth, quem compra uma criação sua está a comprar uma “emoção”, pois todas as peças “contam uma história” que começa no design e na confeção. A emoção de se comprar “uma produção nacional, com matérias-primas e procedimentos que geraram o menor impacto possível no ambiente”, acrescenta Márcia. E onde o valor e reconhecimento dos trabalhadores tenta estar alinhado com os valores de responsabilidade social.
Para o futuro da marca, a fundadora da Nazareth esclarece que ainda há aspetos que pretende aperfeiçoar, nomeadamente o apoio pós-compra. Nesta vertente, refere que os produtos apesar de terem “alta qualidade e de durarem uma vida”, essas são características que só se adquirem com o rigor do processo de design e produção, ou seja, é necessário “pensar sempre no fim de vida útil das peças e usar o know-how dos especialistas em têxtil para que todo o processo seja bem feito.” Um dos objetivos é aumentar a rede de “parceiros certos”, para entregar peças para reciclagem têxtil. Embora reforce que “o ideal é sempre as clientes usarem a imaginação para criar peças novas”.

Márcia Nazareth está presente em todas as etapas desde a criação, a seleção de matérias-primas e fábricas que melhor se ajustam aos valores da Nazareth. Assume o papel de modelo nas sessões fotográficas das peças, como forma de realçar o espírito irreverente da marca, a identidade e gentileza perante todas as mulheres. A preparação e distribuição das encomendas são também cuidadosamente elaboradas por Márcia, para serem entregues às Nazarenas, como são carinhosamente apelidadas as consumidoras da marca.

A história que marca a Nazareth segue empenhada em continuar a inovar não só na criação e design, mas também na sustentabilidade dos processos de produção, no apoio pós-compra e na moda circular.

Nova Rubrica FashionHub

Na FashionHub cativam-nos as marcas com perseverança. As que assumem uma responsabilidade perante a sociedade e o ambiente, um compromisso com os consumidores e despertam uma emoção em cada peça que produzem. “A História que Marca” é a nova rubrica da FashionHub, onde vamos conversar com fundadores de marcas portuguesas, para saber mais sobre os desafios de empreender e como se consegue fazer a diferença na Indústria da Moda.